Acordou. E viu que tudo não passou de um sonho. Dizem que somos muitos. Somos quem? Eles são. Elas também. Ao todo somam mais de 7 bilhões. Eles. E elas. Eu sou um. Um dissolvido nessa sociedade deles. E delas.
            Levantou. Foi até ao banheiro e se viu no espelho. Quem sou eu? Quem sou eu? Quem sou eu. Sou o depende, no mundo do sim e do não. Sou quem não tem pronome. Quem não tem direito. Quem está fora. Fora da regra. A regra que me persegue, me caça, me assola.
            Decidiu tomar um banho. Me vi nu. Quem sou eu? Quem sou eu? Quem sou eu. Sou a pessoa que outra pessoa não pode desnudar. Fazem-me perguntas. E vão embora. Sempre vão. Dizem que não há nada de errado comigo. E depois vão embora. Sempre vão.
            Lavou o cabelo. Lembrou das moças dos comerciais. E dos moços também. São lindos. Dizem que são modelos. Modelos … para eles. E para elas. Não há um de mim lá.
            Procurou uma roupa para vestir. Preciso de roupas novas. Vestiu um pouco dele e um pouco dela. Na falta do eu, há uma mistura deles, e delas. Dizem que farão uma coleção para mim. Decidiu ir ver isso de perto hoje à tarde.
            Resolveu comer. Não tinha chá. Só café ou suco. Escolheu por torradas.
            Foi escovar os dentes. Quem sou eu? Quem sou eu? Reparou nas listras vermelhas e brancas da pasta. Quem sou eu? Quem sou eu? Eles dizem saber sobre mim, sobre quem sou, sobre quais devem ser os meus direitos. Ou sobre a permanente inexistência deles. Elas também. Aliás, algumas delas. Há sempre aquelas que negam a minha existência, dizem que eu não existo. Quem sou eu? Quem sou eu para elas? Quem elas são para mim?
            Pegou o elevador. Tomara que eu desça só. Quem vive só costuma temer companhias. Porque elas vem, me olham, me observam, me encaram, me leem e vão embora. Sempre vão. 7°. 6°. 5°. 4°. Entrou uma criança e sua vó. 3°. A pequena me olha. Nos olhos. Há uma interrogação que sai deles e vem ao meu encontro. 2°. A vó me olha. De cima a baixo. Pego a chave do carro. 1°. -Vó? Térreo. -Shiu! Subsolo. Eu abro a porta e espero a sua saída. - Tenha um bom dia, senhora.
            Entro no carro. Bato a porta. Solto o ar preso em mim. Olho para a chave. Uma gota cai da minha mão. Ligo o carro. Decido ir viver a minha vida.
            Nada na rádio. Nada no celular. Nada em mim. Quem sou eu? O silêncio externo me acompanha.
            Chego no trabalho. Bato o ponto. Solto novamente o ar concomitantemente ao acender da luz no aparelho.
            Arrasto-me à cadeira. Ligo o computador. O espero iniciar. Quem sou eu? Alguém me diz algo. Olho para a direita e vejo uma planilha e alguns documentos.
9. 9:30. 10. 10:30. 11. 11:30. 12. A planilha agora está preenchida e os documentos protocolados. Vou à sala de alguém que ao receber a pasta, me dispensa. Dessa tarde. Incrível como toda sexta me dispensam.
            Lembro-me da loja. Vou ao shopping. Odeio aglomerados. Gente por todos os lados. Um barulho que me enerva. E um vazio que me cerca.
            Entro na loja. Pergunto à moça sobre a nova coleção. Ela ri. Me diz que está no corredor do fundo. Ao me virar, eu tenho a sensação de que alguém me observa. Talvez ela. Talvez todos. E todas.
            Nunca vi tanto cinza na minha vida. Nem em mim. E nem tantas roupas sem forma. Quem sou eu? Quem eles pensam que eu sou?
            Resolvo experimentar umas blusas que curiosamente vão até ao joelho, uma bermuda e uma calça que facilmente cabem três de mim.
            Paro em frente ao provador. Solto o ar preso. Mostro as peças à moça. Ela me entrega o cartão. Viro para a esquerda. Ela me diz que eu devo usar o da direita. Olho para a mão que segura a ficha e vejo uma gota escorrer.
            Arrasto-me no sentido contrário de quem sou. Vou ao sentido de quem eu deveria ser. Novamente nu. Novamente em frente ao espelho. Quem sou eu? Quem eu deveria ser? Escuto cochicharem do lado de fora. E rirem do meu lado de dentro. Nada me agrada. Nada me serve. É o que tem.
            Digo que vou levar tudo. -Que bom, foi pensado para gente igual a você. Sarcasmo brotando em meio a cabeça levemente inclinada para o lado com ares de empatia e caridade.
            Deixei o dinheiro no caixa e um pouco do meu amor por mim no balcão.
            Decidiu comer algo lá mesmo. Queria massa. Só tinha comida japonesa. Viu-se obrigado a almoçar um cone e dois rolinhos verdes com arroz dentro. Disseram-lhe que ficava melhor se mergulhados numa água estranha. No fim subiu o olhar e viu um casal a sua frente. Incrível como eles e elas são felizes. Como se olham. Como se equalizam. Quem sou eu? Quem sou eu? Há alguém que possa me responder? E me olhar nos olhos dessa forma?
            Em meio à reflexão o casal nota a sua presença. Incrível como sorrisos serenos conseguem se fechar tão rápido.
            É hora de ir embora.
            Nada na rádio. Nada no celular. Um turbilhão em mim. Quem sou eu? Quem sou eu? Quem sou eu …
            Chaves de casa na mão. Uma volta. Duas voltas. A porta se abre. Alguma porta precisava se abrir para mim. Logo em seguida, ela se fecha. Uma volta. Duas voltas. Olho em redor e me vejo em tudo. Eu estou em cada canto daquele lugar. Ali era o meu mundo.
            Sacolas no chão. TV ligada. O sofá me abraça. Alguma coisa precisava me abraçar. Valeu a pena cada centavo.
            Nada na TV aberta. Nada na TV fechada. Nada. Silêncio. E turbilhão.
            Outro banho. Outra vez nu. Quem sou eu? Quem me fez assim? Deus? A ciência? Dizem que podem me mudar. Dizem que é difícil. Talvez eu precise mentir. Contar uma história pronta. Como mudar? Mudar o quê?
            Passo a toalha sobre a pele e sinto cada nuance. Cada curva. E cada falta dela. Coloco qualquer roupa. Um pouco dele. Um pouco dela. Nada de mim.
            Quem sou eu? Quem sou eu? Quem sou eu?
            Não importa. Não importa para eles. Não importa para elas. Não importa para a pequena do quarto andar. Não importa para a sua vó. Não importa para quem me entrega planilhas e documentos. Não importa para as moças da loja. Não importa para o casal. Não importa.
            É hora de acabar com o dia. Ele já está longo demais.
            Dormiu. Acordou. E viu que tudo não passou de um sonho.


Milla Carolina.