Foto: MC LFDAT
Bem vindo ao inconsciente de um socialmente reconhecido como pardo, classe média baixa, inteligente, sortudo. Descendente de povos naturais brasileiros e africanos. Filho de Maurita Ribeiro (negra, mas da pele mais clara) e João Aparecido (pardo, mas aos olhos de todos. Branco). Que têm irmãos e tios dependentes, que mesmo tentando entender não entende e se emputece fácil (por exemplo, ontem briguei com meu irmão. Coração aperta). Que já partiu corações e já teve o coração partido. Que já sorriu, já chorou, e já quis chorar e não tinha lágrimas e já quis parar de chorar e as lágrimas não cessavam. Que já teve as costas queimadas pelo sol e calos nos pés e nas mãos, por trabalho. Que nunca soou como seus parentes mais velhos. Que já sofreu. Mas que reconhece que perto de tantos, não sabe nada de sofrimento. Aí, eu não sou diferente de ninguém só porque consigo escrever. Ou porque frequentei faculdade. Ou porque minha mãe comprou um carro novo depois de trabalhar desde os 14 anos como professora. Ou porque meu pai já recebeu 58 salários num mês. Não sou. 58 salários lá em 98 e tinha mês que não recebia nada, porque preferia ver um sorriso no rosto de quem não podia pagar. Meus pais, a maneira deles, sempre tentaram e tentam até hoje ajudar o próximo. Muitas vezes ficaram no preju, mas outras viram amigos formados. Até os meus seis anos de idade, eu não tinha uma avó. A avó que tinha era de consideração. Porque minha avó biológica rejeitou a mim e minha irmã quando nascemos, por sermos filhos da minha mãe. Que é negra e ela não queria que meu pai se casasse com uma mulher negra. Minha avó é negra, negra como a noite sem luar. Sou mais um que viu sua família se desestruturar por brigas, traições e afins. Que foi a escola no Gama, e conheceu preconceitos e racismos velados pelas crianças que aprenderam em suas casas, com seus medíocres pais, que aprenderam com seus pais, que se reforçaram nas religiões cristãs. Que viu um dado dia, seu primo ser pego pela polícia escolar formada pelos estudantes por simplesmente ser negro. Detalhe, segunda série. Que viu uma professora cheia de ódio de pobre dar aula pra pobre, essa professora é chamada de Ivana e é prima do Joaquim Roriz. Com ela eu não conseguia estudar, só sentia ódio. Escrevia aquelas redações e ela mudava o que queria escrever, sinceramente, se não fosse o Professor João Batista do CEM 03 do Gama, jamais teria voltado a escrever. Continuando. Reprovei. No outro ano fui morar e estudar em São Sebastião. Conheci o déficit de ensino, eu reprovado, era o aluno mais inteligente da sala. Ensinava todos os outros. Conheci histórias de crianças que espantariam tantos adultos. Conheci um amigo que já tinha vendido drogas na escola porque o irmão mandou. Conheci outro que viu o irmão morrer por tiro. Conheci quem vivia em condições sub humanas. Ouvi relatos de garotas prostituídas. Não que fossem diferentes daqui. Pedregal. Aqui conheci tantos também, mas não convivi. Daí fui pra Minas Gerais e Formosa, morei nesses locais na zona rural. Assentamentos desestruturados. Claro, ali passei a entender os planos do governo para com os pobres. Novamente, nas escolas, eu era o aluno mais inteligente da turma. Só que diferente. Tudo que os professores ensinavam, na quarta, na quinta e sexta série, eu já havia aprendido até a terceira série. Aí fica fácil ser o inteligente da família, da escola. Sinceramente, nunca me esforcei pra ser inteligente, nunca estudei pra uma prova sequer. E via quem se esforçava, não conseguir e desistir. Nesses locais, as histórias se multiplicavam. A cada relato, sentia o que contavam. Também tive os meus. Nesses lugares, conheci a fofoca. Essa é uma arma que já matou muita gente e desfez muitas famílias. Chegou a ponto da minha família receber ameaças de morte. Regressamos ao ponto de partida. Aqui, eu voltei a escrever. Voltei a escrever porque aos nove anos ou dez eu escrevi um poema com meu tio. Desde sempre queria ser poeta e não sabia. Aí, não me arrependo de nada vivido. Por mais que aqui eu tenha perdido meu tio João em 2007, porque reagiu a um assalto. Um primo que se suicidou no mesmo ano. Um tio que morreu em um acidente, no mesmo ano. Não troco meu barraco fácil por uma mansão no Lago Sul. Não é esse meu sonho. Meu sonho é que ninguém mais perca um amigo, um irmão, um tio, um pai, uma mãe pelo crime. Pela violência regida por nossos governantes. Deixei de contar algumas coisas, não por omissão. Mas por ainda não estar preparado para escrever sobre.

Eu:

"Negro demais pra ser branco.
Branco demais pra ser negro."

"Pobre demais pra ser rico,
Rico demais pra ser pobre."

"A ultra esquerda me odeia.
A ultra direita também."

"Sabe qual é a nossa diferença, Sheyden?
Meu cabelo é ruim e o seu é bom."

"Filho, o quê adianta isso tudo se não tem dinheiro pra sair?
Pra comprar uma roupa nova? Quem é que se importa?"

"Quantos talentos se perderam por culpa de professoras como a Ivana? Ou pais, ou mídia? Ou por serem diagnosticados com déficit de atenção?
Quantas pessoas se perderam?"

"Quantas vezes quis matar quem me tratava com desdém, preconceito e tudo o mais?"

"Respeito é o que nos mantém vivos"

"21 anos contrariando 75% das estatísticas"

"Quantos parentes agora na cadeia?"

"Mano é fácil, é só pegar uma arma e vender pó."

Minha arma é um papel municiado com palavras escritas com a tinta da caneta, não com sangue..
Eu quero vender pó.
Pó-esia.
PóEsia.
Poesia.
Quero levar amor e prazer a quem lê.
Se não souber ler, declamo.

Isso é pra dizer que eu não sou tão diferente assim de você. Imagino, que em alguma parte você se viu. Viu um amigo. Um parente. Aí, não desista nunca dos seus sonhos. Eu sou obra dos meus sonhos. Eu posso não ter um livro palpável ainda. Mas não porque desisti dos meus sonhos, mas porque o meu sonho é não depender de grandes empresas. De não ver meu talento jogado fora em um Correio Brasiliense da vida. A minha ambição nunca foi ter panos, ter os aparelhos, os pisantes. Ela sempre foi de mudar o mundo com ideias.