Sheyden AfroIndígena - Fotografia
Cena de realidade, moça, mas que mais parecia cinema. Noite de sábado normal, vizinhos curtem um som alto, bebidas, comidas, jogos, discussões. Tudo como sempre. Beijos ousados de um lado. Início de raiva do outro. Os que eram amigos se batem. Se jogam no chão. Um homem forte e gordo agride a mulher do outro. O outro corre pro carro até em casa. Busca o resolve. E resolve por fim a briga que no campo de batalha não cessava. O irmão hora batia, hora apanhava. A cunhada no meio tentando tirar, apanha da outra do cara que bateu na moça. Um povo corre pro carro, e os socos de fora pra dentro são desferidos sem êxito. O motorista arranca e arrasta a mulher que apanhou do cara e o espancava de fora pra dentro. Cai ensanguentada e desnorteada. O motorista vai até o fim da rua e volta querendo passar por cima dela. O carro com mulher e crianças. Não passa por cima porque o irmão do outro voltou e arrastou se arrastando. No quebra molas já parado meio corpo pra fora do carro. O que busca o revólver resolve atirar contra o outro. Sete disparos, arma conhecida como ponto quarenta. O motorista desiste de bater na porta do carro do outro que disparava. Fogem gritando que acertou alguém. E param no hospital. Já o outro namorado da moça. Volta putaço com a moça que começou a briga por um copo de bebida. Duas semanas depois, ninguém viu nada. E eu mesmo, nem sei do que escrevi. Só sei que por alguns minutos eu tentei e pestanejei falar algo bom. Só pensei em merda, vou sair daqui.

Olhei pra minha irmã do meu lado e disse:

- Sair daqui ir pra onde?! Onde é que é melhor? Fazer o quê? Viver do quê? Aqui ao menos há uma ponta de esperança...

Silêncio...

De volta ao quarto, deito e penso e repenso. Se eu tivesse um daquele resolveria tudo. Ou se eu jogasse na mega, ganhasse e saísse daqui. Já sentiu o que um favelado sentiu? Eu naquela noite de novo senti. Quase desisti de escrever isso aqui. Quase desisti de escrever de novo sobre isso aqui. Quase decidi em desistir de vez disso aqui. O cansaço me capota e durmo quase cinco horas seguidas. Coisa rara nesses tempos. Acordo e me assusto com o tempo. Sorria pra mim. Parecia que dizia pra não desistir antes do fim. Levantei de trégua com o azar e com a sorte. Decidi me reconhecer nisso aqui.

Despejei toneladas de arte num pedaçin de papel. Falei de bocas beijadas e bocas sonhadas. Desejei o topo e minhas conquistas. N'algumas pequenas poesias disse que vai ser melhor eles vir aqui. Conhecer isso aqui. Nem que pra isso eu tenha que escrever de novo e de novo sobre isso aqui. Eu disse pra mim mesmo:

- Cês pode não achar, mas eu sou quebrada. Vivo e morro nela todos os dias.Já sai e voltei tantas vezes. É, eu sou. Eu sou muito mais do que penso disso aqui.

Acordei do sonho antes da hora. Sabe, eu ainda lembro de quando constatei que minha forma de pensar já havia sido denominada nessa sociedade ocidental, e essa forma de pensar era demasiado perigosa. Talvez eu fosse perseguido por pessoas e/ou polícia. Só em dizer que eu fosse esse tipo. Eu lembro e foi como quando me descobri ateu. Fiquei quatro dias sem dormir direito. Tinha ascendido meus pensamentos. Senti medo, fome e frio. Minha ansiedade nesse tempo foi abaixo. Lá embaixo. Lá no poço.

O mundo tinha uma ordem e eu decidi desordenar essa ordem. Vi meus pensamentos preconceituosos. Vi que tinham roubado o meu futuro com o saque ao meus antepassados. Eu sentia ódio do mundo antes mesmo disso. Já era revoltado com o mundo antes mesmo disso. Já pensava em como viver melhor antes mesmo disso. Ser o que sou é só uma denominação. Nada mais. O mundo havia inventado uma palavra pra dizer o que sou. E eu nunca nem pude dizer se concordo ou não. Porque a padronização desse pensamento é perigosa, né?! Já disse de início. Eu sou a merda que o mundo odeia, antes mesmo de saber que era parte dessa palavra. Traduzida de várias formas. E eu nem sabia o que significava, sujo, mal lavado, escarrado, fedido, sem sucesso. Disseram na escolinha enquanto meus pais não vinham por excesso de trabalho. "Ei, pretinho! Vem cá! Cadê seus pais vagabundos, hein?!"

Nem sabia o que era e senti medo, vergonha de mim e dos meus pais que trabalhavam pra eu poder estudar. Mas se tivessem perguntado eu teria dito. Preferia a escola da rua. Mas tinha dias bons lá dentro daquele cárcere, os dias que espalhavam em mim os índios. Toda a escola me via diferente. Sem julgamentos. Mas era só ali. Os outros dias vinham e me trancavam no banheiro durante o recreio. A professora depois não deixava ir no banheiro, dizia que devia ter ido no recreio. E lembrei de tudo isso antes de por o pé no chão. Pés no chão e o mundão gira. Por mais triste que aparente eu gostava de boa parte daquele tempo.

No entanto eu queria ser o Júnior, ter o cabelo igual o do Júnior. Dançar igual ao Júnior. Ter as minas como o Júnior. Ser interessante como o Júnior, o moleque tocava vários instrumentos com doze anos de idade. Eu, no máximo, tocava a água pra ver se tava no ponto pra banhar de copo. Quente onde a água caia e frio no resto do corpo.

Agora cresci me vi aqui, diante a minha face refletida no espelho. Querendo ser, apenas eu mesmo. Barba grande, cabelo grande e tudo bagunçado. Relacionamentos e vida profissional. Tudo na mais harmônica bagunça possível. Quero incessantemente ser o que não deixaram nunca que eu fosse. Perdi tanto tempo que agora perco algum tempo me dedicando esse tempo. A cara eu lavo e os dentes escovo. Me deleito no prazer de reconhecer no espelho, eu mesmo.

E tem tempo que não resisto a um espelho. Me aprecio, vejo o que mudou e que ainda muda. Pergunto, será que faz quanto tempo que não vejo meu antigo rosto?! E, se isso me atrapalha e a resposta é de que, nunca estive tão bem comigo mesmo. Nunca me vi tão lindo em reflexos. Por mais que ainda me encorajo a olhar. Por mais que por noites e dias eu deteste todo o meu corpo e a minha cor. Eu ando gostando de ser eu mesmo. Sem precisar me esconder em palavras, atos e roupas que nunca foram o que sou. E têm dias que esbanjo tamanho amor por mim que me chamam de egocêntrico. Ah, que mentira desses aí. Eu ainda reconheço meus defeitos. Vou bem agora. Coloco uma música que fale mais de mim pra tocar e me inspiro na brisa que bate na porta. E vai ocupando cada espaço da casa e no meu corpo. Como se ela estivesse aqui.

E está aqui a presença dela, presença de Deusa. Cheiro de Deusa. Gosto de Deusa. Eu sou ateu, mas acredito em Deusas. E ela vem sempre quando tô na pior ou na melhor e longe dela. Envia lá de onde tá a sua presença. Pra me contentar com sua ausência. Que bom que agora vem.

Tem um cheiro de erotismo doce do tipo que exala do corpo dela quando a toco. Adoro essa animação que imergi dela aqui. O tempo fica bom. E eu me into melhor. Foda que dura alguns poucos instantes. Mas hoje quando se for eu vou ser o que aprendi a ser. Melhor.

Se foi a brisa e decidi ir ao mundo. Fui. Baú demorado, baú lotado. Da janela pixos de amor. Pixos revividos dos que se foram. Grapixos nos muros das mansões. E mesmo que falassem algo. Eu só conseguia pensar em você. Nua. Seminua. Vestida. Talvez puta, talvez poetisa. Sempre mulher.

Cheguei num sarau e cê tava lá. Como sempre. Sorriu e me alegrou. Elogiou meu perfume. Colou o queixo no meu pescoço. Deu um xero no meu cangote e disse palavras mágicas que abrem qualquer corpo fechado. Pretinho. Teu cheiro na presença é melhor que as minhas pirações. E por fim me beijou o rosto com um olhar no olho, e a mão do outro lado do rosto. Gostei como sempre. E mais ainda que se demorou nu nosso abraço. Bem colado. Lhe sussurrei algumas palavras:

- Pretinha, tenho planos pra mudar isso tudo.

Seu beijo me cala a timidez. E que essa seja a única coisa que me cale de agora em diante. E mais do que surpreso esse beijo foi desejado tantas vezes antes. E bem ali onde todos poderiam ver nossa cena de amor delinquente. Teu beijos que arrepiam e me excitam, minhas mãos que te colam em mim. E só um desejo em mente. De ser teu motivo de escrever poesias.

Fuga do palco pra trocar beijos como num tiroteio escondido num corredor qualquer. Teus seios beijo. E me desabotoa a bermuda. Me ajoelho diante tua cascata proeminente e me afogo no temporal que lhe causo. Com dedos e língua. Com toques peculiares. Que bunda linda de morder. Que lábios carnudos de chupar. Te beijo. Depois de em mim desaguar. Lhe disparo com minha arma. E sentimos a euforia da vida mundana. Agradecemos a existência de nossos corpos. Nos chamam no palco. E a platéia nunca soube o porque da minha melhor apresentação.

Não sei se foi miragem ou se foi real. Ela se foi antes que eu perguntasse. Não sei se tudo aquilo foi um sonho que sonhei no ônibus.

Maluco Sonhador.
Sheyden AfroIndígena.